O Mito de Orfeu e a poesia

Orfeu Rebelde

Orfeu rebelde, canto como sou:
Canto como um possesso
Que na casca do tempo, a canivete,
Gravasse a fúria de cada momento;
Canto, a ver se o meu canto compromete
A eternidade no meu sofrimento.
Outros, felizes, sejam rouxinóis...
Eu ergo a voz assim, num desafio:
Que o céu e a terra, pedras conjugadas
Do moinho cruel que me tritura,
Saibam que há gritos como há nortadas,
Violências famintas de ternura.
Bicho instintivo que adivinha a morte
No corpo dum poeta que a recusa,
Canto como quem usa
Os versos em legítima defesa.
Canto, sem perguntar à Musa
Se o canto é de terror ou de beleza.

Miguel Torga


Orpheus and Euridice, 1890, George Frederic Watts RA


Descida aos Infernos

Desço aos infernos, a descer em mim.
Mas agora o meu canto não perfura
O coração da morte,
À procura
Da sombra
Dum amor perdido.
Agora
É o repetido
Aceno
Do próprio abismo
Que me seduz.
É ele, embriaguez nocturna da vontade,
Que me obriga a sair da claridade
E a caminhar sem luz.

Ergo a voz e mergulho
Dentro do poço,
Neste moço heroísmo
Dos poetas,
Que enfrentam confiantes
O interdito
Guardado por gigantes,
Cães vigilantes
Aos portões do mito.

E entro finalmente
No reino tenebroso
Das minhas trevas.
Quebra-se a lira,
Cessa a melodia;
E um medo triste, de vergonha e assombro,
Gela-me o sangue, rio sem nascente,
Onde o céu, lá no alto, se reflecte,
Inútil como a paz que me promete.

Miguel Torga


*Deves consultar a ficha informativa distribuída na aula de dia 2 de Dezembro de 2011.

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